A União realmente venceu a discussão sobre as subvenções fiscais de ICMS?

No final de abril, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou os REsp’s 194511/RS e 1987158/SC, sob o rito de recursos repetitivos, decidindo não ser possível excluir os benefícios fiscais relacionados ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), tais como redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, diferimento, dentre outros, da base de cálculo do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), salvo quando atendidos os requisitos previstos no artigo 10 da Lei Complementar 160/2017 e no artigo 30 da Lei 12.973/2014. 

O julgamento foi considerado uma vitória pela União, que enxergou a possibilidade de autuar, ou de questionar, os descontos na base de cálculo do IRPJ e CSLL dos valores de benefícios fiscais de ICMS concedidos pelos estados e o Distrito Federal.  

Até o dia 4 de maio, essa decisão se encontrava suspensa em razão de medida cautelar concedida pelo ministro do STF André Mendonça, que determinou o sobrestamento de todos os processos afetados pelo Tema 1182/STJ, até decisão definitiva no Tema 843/STF. Contudo, em decisão de reconsideração, o relator tornou sem efeito a tutela de urgência, o que culmina na vigência da decisão do STJ. 

Agora, na iminência de publicação do acórdão do julgamento realizado pelo STJ, cabe o questionamento: a União realmente venceu a discussão e poderá autuar livremente os descontos na base de cálculo do IRPJ e CSLL, dos benefícios fiscais de ICMS? 

Pois bem, o STJ, no julgamento, fixou três teses, que merecem ser examinadas com atenção.  

A primeira delas dispõe o seguinte: 

“I – Impossível excluir os benefícios fiscais relacionados ao ICMS – tais como redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, diferimento, entre outros – da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, salvo quando atendidos os requisitos previstos em lei (artigo 10 da Lei Complementar 160/2017 e artigo 30 da Lei 12.973/2014), não se lhes aplicando o entendimento firmado no EREsp 1.517.492, que excluiu o crédito presumido de ICMS das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL”.

Entendemos que aqui está o divisor de águas da discussão. Isso porque a Receita Federal, mesmo após a edição da LC 160/2017, insiste que para fins de fruição do direito de exclusão dos benefícios de ICMS das bases do IRPJ e da CSLL haveria uma distinção entre subvenções de custeio e subvenções para investimento, e que somente as últimas poderiam escapar da tributação. 

Ocorre que a referida Lei Complementar suprimiu essa distinção, ao incluir os parágrafos 4º e 5º, no artigo 30 da Lei 12.973/14, prevendo que: “Os incentivos e benefícios fiscais ou financeiro-fiscais relativos ‘(…) concedidos pelos estados e pelo distrito federal, são considerados subvenções para investimento, vedada a exigência de outros requisitos ou condições não previstas neste artigo”[1].

Este foi o mesmo raciocínio seguido pelo STJ para aplicação da segunda e terceira teses firmadas na recente decisão: 

“II – Para a exclusão dos benefícios fiscais relacionados ao ICMS – tais como redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, diferimento, entre outros – da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, não deve ser exigida a demonstração de concessão como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos.
III – Considerando que a Lei Complementar 160/2017 incluiu os parágrafos 4º e 5º no artigo 30 da Lei 12.973/2014 sem, entretanto, revogar o disposto no seu parágrafo 2º, a dispensa de comprovação prévia, pela empresa, de que a subvenção fiscal foi concedida como medida de estímulo à implantação ou à expansão do empreendimento econômico não obsta a Receita Federal de proceder ao lançamento do IRPJ e da CSLL se, em procedimento fiscalizatório, for verificado que os valores oriundos do benefício fiscal foram utilizados para finalidade estranha à garantia da viabilidade do empreendimento econômico”. 

A despeito da interpretação que vem sendo divulgada em importantes meios de comunicação, de que o STJ teria realizado a distinção entre subvenções para custeio e subvenções para investimento, e que o fisco teria liberdade para fiscalização e, principalmente, autuação dos valores descontados do lucro real em relação a todos os contribuintes, sem qualquer distinção, isso não ocorreu.  

O STJ, em síntese, entendeu que em relação aos benefícios objeto do acórdão:  

  1. uma vez atendidos os requisitos legais (artigo 10 da LC 160/17 e artigo 30 da Lei 12.973/14), poderão ser descontados da base de cálculo do IRPJ e CSLL os valores referentes a benefícios de ICMS – o que implica na atenção do contribuinte em registrar os respectivos benefícios em reserva de lucro;  
  2. para fins de validade e eficácia da exclusão, não deve ser exigida a demonstração de concessão como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos; e  
  3. que a dispensa dessa prévia comprovação, não impede que a Receita Federal proceda o lançamento do IRPJ e CSLL se, em procedimento fiscalizatório, for verificado que os valores oriundos do benefício fiscal foram utilizados para finalidade estranha à garantia da viabilidade do empreendimento econômico. 

Com efeito, extrai-se do julgado que 1) em princípio, para fins de não computação ao lucro real, os incentivos ou benefícios fiscais ou financeiro-fiscais de ICMS são subvenção para investimento[2]; 2) todos os valores a eles atrelados podem esquivar-se de tributação (IRPJ e CSLL), se preenchidos os requisitos legais; e 3) o fisco poderá autuar eventuais descontos cujos valores se destinem para fins alheios ao desenvolvimento do empreendimento econômico, o que remete à necessidade de aplicação em atividades operacionais das empresas beneficiadas. Portanto, a hipótese de autuação fiscal dos descontos deve ser aplicada em caráter é subsidiário, apenas nos casos em que se comprove desvio de finalidade. 

Entendemos, sob esse contexto, que eventual autuação fiscal, com a exigência de eventuais diferenças a título de IRPJ e CSLL, além da imputação de multas e juros, deve obedecer ao regime jurídico do lançamento tributário (artigo 142 do CTN), o que implica necessariamente na motivação dessa espécie de ato administrativo. 

Ora, dispõe o artigo 142 do Código Tributário Nacional que “compete privativamente à autoridade administrativa constituir crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível”.  

Paulo Barros de Carvalho ensina que, em um auto de infração, operam seis pressupostos, os quais devem ser obedecidos para a validade do lançamento fiscal via auto de infração. Dentre eles está o inafastável pressuposto causal, que consiste no “(…) nexo lógico que há de existir entre o suceder do evento tributário (motivo), a atribuição desse evento a certa pessoa, bem como a mensuração do acontecimento típico (conteúdo), tudo em função da finalidade, qual seja, o exercício possível do direito de o Estado exigir a prestação pecuniária que lhe é devida”[3].

A Receita Federal, portanto, em atenção ao regime legal do lançamento tributário ex officio deve necessariamente comprovar a subsunção do fato (evento concreto) à norma (regra matriz de incidência tributária), o que implica afasta qualquer possibilidade de se cobrar tributos por mera “conveniência” (procurando conferir à tese fixada pelo Tema 1.182, per se, o caráter de suficiência para o lançamento).  

Aliás, não se pode descurar que o lançamento tributário efetuado com base no artigo 142 do CTN é um ato administrativo, o que implica no dever de motivação por parte da autoridade pública quando de sua consecução. Nesse sentido, vale destacar as lições de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:  

“O princípio da motivação exige que a Administração Pública indique os fundamentos de fato e de direito de suas decisões. Ele está consagrado pela doutrina e pela jurisprudência, não havendo mais espaço para as velhas doutrinas que discutiam se a sua obrigatoriedade alcançava só os atos vinculados ou só os atos discricionários, ou se estava presente em ambas as categorias. A sua obrigatoriedade se justifica em qualquer tipo de ato, porque se trata de formalidade necessária para permitir o controle de legalidade dos atos administrativos” [4].  

E sob este prisma, cabe destacar que a motivação é corolário dos princípios dispostos no artigo 37 da Constituição de 1988[5] que balizam as atividades da Administração Pública, o que inclui a Receita Federal.  

Efetuando-se a transposição desses ensinamentos à hipótese versada no item III do Tema 1.182 do STJ – procedimento fiscalizatório em caso de suspeita de finalidade estranha à garantia da viabilidade do empreendimento econômico — demanda-se da autoridade fiscal que proceda ao lançamento mediante ato administrativo que contenha elementos de prova aptos a demonstrar o desvio de finalidade dos incentivos ou benefícios tratados como subvenções para investimento. Noutros dizeres, o lançamento tributário só será válido se a Receita Federal cumprir com seu o ônus probatório.  

Bem por isso, o lançamento tributário não pode se pautar na singela hipótese de o contribuinte exercer seu direito de descontar das bases do IRPJ e da CSLL valores de ICMS decorrentes de estímulos ou benefícios fiscais de ICMS, mas por elementos de fato (de prova), apurados e apontados pelo fisco, que demonstrem a sua não destinação aos empreendimentos econômicos desenvolvidos pela empresa.  

Desse modo, eventual atuação fiscal que não implique no devido processo de apuração contábil e/ou fiscal em face do contribuinte, configura ilegal arbítrio da autoridade fiscal, em afronta ao que foi fixado no item II do tema fixado pelo STJ (acima destacado). 

Em arremate das considerações aqui efetuadas, a expectativa dos contribuintes para o julgamento do Tema 1.182 era de que o STJ decidisse nas mesmas premissas aplicadas no precedente da exclusão dos valores de créditos presumidos (EREsp 1.517.492), qual seja, pela violação ao pacto federativo, por redução indireta dos estímulos concedidos pelos estados e pelo Distrito Federal.  

Não obstante, esse recente julgamento, embora não tenha sido uma vitória total dos contribuintes, não se pode afastar a premissa de que inexiste, para fins de não computação dos incentivos e benefícios de ICMS no Lucro Real, distinção entre subvenções para custeio e investimento. Sendo assim, para fins de possibilidade de descontos dos respectivos valores considera-se que o recente acórdão do STJ é uma boa decisão, desde que respeitados os requisitos dispostos pelo artigo 30 da Lei 12.973/14. 

Contudo, a nosso sentir, há um ponto que merece ser aclarado, que diz respeito à clareza da expressão finalidade estranha disposta no o item III do tema aqui discutido, a qual poderá ensejar uma nova onda de contencioso sobre essa conturbada questão.

[1] Trecho final do § 4º do artigo 30 da Lei 12.973/2014. 

[2] Exceção à hipótese de crédito presumido, cujo pressuposto para exclusão do lucro real se dá em face do respeito ao pacto federativo (EREsp 1.517.492). 

[3] Carvalho, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método / Paulo de Barros Carvalho. – 7. ed. rev. – São Paulo: Noeses, 2018. Pág. 573 

[4] Direito administrativo / Maria Sylvia Zanella Di Pietro. – 33. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020, Pág. 246. 

[5] Artigo 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (…).”

FONTE: Jota