Em uma decisão que reforça a adaptação do Direito às novas tecnologias, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu, por unanimidade, a possibilidade de se utilizar e-mail como meio válido de notificação extrajudicial do devedor fiduciante, desde que comprovado o recebimento da mensagem no endereço eletrônico informado no contrato de alienação fiduciária.
A decisão representa um importante avanço na interpretação do Decreto-Lei nº 911/1969, que regula as ações de busca e apreensão de bens móveis alienados fiduciariamente. Tradicionalmente, o dispositivo exige que o credor notifique extrajudicialmente o devedor antes de ajuizar a ação de busca e apreensão, sendo essa notificação feita, em regra, por carta registrada com aviso de recebimento (AR).
Contudo, o STJ entendeu que, desde que preenchidos os requisitos mínimos de segurança e autenticidade, o envio de e-mail pode substituir a carta com AR, desde que a mensagem tenha sido encaminhada ao endereço eletrônico informado no contrato e haja comprovação efetiva do seu recebimento.
O caso concreto
O julgamento decorreu de uma ação de busca e apreensão ajuizada por uma instituição financeira contra um cliente inadimplente em contrato de financiamento de veículo com garantia de alienação fiduciária. O banco alegou ter enviado a notificação extrajudicial por e-mail, mas o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) entendeu que esse meio não estava de acordo com o artigo 2º, § 2º, do Decreto-Lei 911/1969, e julgou a ação improcedente, afirmando que não havia prova inequívoca do recebimento.
No Recurso Especial interposto, o STJ reafirmou a necessidade da notificação extrajudicial, mas reconheceu a possibilidade de sua realização por meios eletrônicos, como o e-mail, desde que observadas determinadas cautelas.
O que diz a legislação?
O Decreto-Lei nº 911/1969, em seu artigo 2º, § 2º, prevê que o ajuizamento da ação de busca e apreensão depende da prévia constituição em mora do devedor, a qual pode ser comprovada mediante o envio de notificação extrajudicial por meio de carta registrada com AR. A Lei nº 13.043/2014 alterou o texto para prever que a mora “poderá” ser comprovada por esse meio o que abriu margem para outras formas de notificação que assegurem a ciência inequívoca do devedor.
Entendimento do STJ
Para o relator do caso, ministro Antônio Carlos Ferreira, exigir que toda inovação tecnológica passe por regulamentação normativa específica para ser aceita como prova judicial levaria à subutilização de recursos tecnológicos que já estão amplamente consolidados no cotidiano das relações comerciais e empresariais.
Ele destacou que o envio de e-mails é prática comum e eficaz na comunicação corporativa e pode ser equiparado à carta registrada desde que comprovado o recebimento e autenticidade da mensagem, incluindo:
- endereço eletrônico correspondente ao constante no contrato;
- evidência do envio;
- protocolo ou confirmação de recebimento;
- conteúdo íntegro da notificação enviada.
Segundo o relator, “o Direito não pode ignorar o surgimento de novos meios de comunicação; ao contrário, deve acompanhá-los, especialmente quando esses meios se mostram mais eficientes, econômicos e seguros”.
O ministro também lembrou que, conforme já decidido pela 2ª Seção do STJ no julgamento do REsp 1.951.662 (recurso repetitivo), não importa quem assina o AR, desde que a entrega tenha sido realizada no endereço indicado no contrato. Essa lógica, por analogia, pode ser aplicada ao e-mail, com as devidas adaptações.
Garantia de ciência e transparência
A notificação extrajudicial não é apenas um requisito formal: ela assegura ao devedor o direito de saber que está inadimplente e permite que ele adote medidas para evitar o ajuizamento da ação, como regularizar sua situação ou buscar um acordo.
Ao permitir o uso do e-mail, o STJ reconhece a realidade contemporânea da comunicação digital e reforça a transparência nas relações contratuais, especialmente no setor financeiro.
Contudo, a corte enfatizou que o uso do e-mail como forma de notificação não dispensa o credor de comprovar a efetiva entrega da mensagem. No caso concreto, como o banco não apresentou essa comprovação de forma adequada, o recurso foi negado.
Implicações práticas
A decisão do STJ traz reflexos diretos para instituições financeiras, empresas de crédito e demais credores que trabalham com alienação fiduciária de bens móveis, como automóveis, máquinas e equipamentos:
- É essencial incluir no contrato um endereço eletrônico válido do devedor, com destaque para a possibilidade de comunicação oficial por este meio;
- O credor deve adotar ferramentas que registrem e comprovem a entrega e leitura da mensagem eletrônica (como certificados digitais, logs de servidores ou plataformas com protocolo de envio);
- A notificação por e-mail não substitui a necessidade de comprovação documental robusta, pois o ônus da prova recai sobre o credor.
Considerações finais
A decisão da 4ª Turma do STJ reafirma a tendência do Judiciário de modernizar a interpretação das normas processuais e contratuais, promovendo maior celeridade, eficiência e segurança jurídica.
No entanto, ainda que a notificação por e-mail tenha sido validada em tese, cada caso deve ser analisado individualmente, especialmente quanto à prova do recebimento. O uso de meios eletrônicos exige rigor na coleta e apresentação de evidências.
Na prática, o credor que deseja utilizar o e-mail como instrumento de notificação extrajudicial deve se cercar de cuidados técnicos e jurídicos para evitar questionamentos futuros e, se possível, contar com assessoria especializada para revisar seus contratos e procedimentos de cobrança.