O Supremo Tribunal Federal (STF) interrompeu o julgamento de uma ação de extrema relevância social e jurídica: a discussão sobre a legalidade dos reajustes aplicados aos serviços funerários na cidade de São Paulo, privatizados em anos recentes. O debate gira em torno da manutenção das liminares concedidas pelo ministro Flávio Dino, que limitaram os valores cobrados por empresas concessionárias e determinaram uma série de obrigações à Prefeitura paulistana para garantir a transparência, a fiscalização e a acessibilidade desses serviços. O julgamento foi suspenso no último dia 14 de maio de 2025 por pedido de vista do ministro Luiz Fux.
A ação foi proposta pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que questiona a constitucionalidade de duas leis municipais que transferiram à iniciativa privada a prestação dos serviços funerários, cemiteriais e de cremação. Após a privatização, reportagens apontaram que os preços dos serviços dispararam, gerando profunda insatisfação popular e levantando preocupações sobre a exploração econômica em um momento de extrema vulnerabilidade das famílias: a perda de um ente querido.
Em sua liminar, concedida em novembro de 2024, o ministro Flávio Dino afirmou que os reajustes eram, à primeira vista, abusivos, e que havia fortes indícios de que a privatização gerou violações sistêmicas a preceitos constitucionais fundamentais. Entre eles, destacam-se a dignidade da pessoa humana, o dever do Estado de assegurar a prestação adequada de serviços públicos e a obrigação de que tais serviços sejam acessíveis, eficientes e pautados pela moralidade administrativa, conforme previsto nos artigos 37 e 176 da Constituição Federal.
Dino fundamentou sua decisão em dados técnicos e encaminhou o caso ao Nupec (Núcleo de Processos Estruturais Complexos do STF) para a elaboração de uma nota técnica. O documento concluiu que os reajustes autorizados pelo Município foram, em tese, modestos, mas que algumas concessionárias estariam desrespeitando os limites fixados, com práticas abusivas, ausência de transparência nos preços e falhas significativas na informação ao consumidor.
A partir desse parecer técnico, o relator determinou medidas adicionais à Prefeitura de São Paulo, incluindo: a divulgação facilitada dos preços e demais condições dos serviços funerários e cemiteriais; a ampliação e reforço das ações de fiscalização; a obrigação de responder a reclamações de cidadãos e entidades no prazo de até 30 dias; e a aplicação de sanções proporcionais à gravidade das infrações cometidas pelas empresas concessionárias.
Para o ministro Flávio Dino, o núcleo da controvérsia não está apenas nos aspectos regulatórios e contratuais da concessão, mas sim na preservação dos direitos fundamentais diante da atuação do setor privado em áreas sensíveis. Em seu voto, afirmou que a morte de um brasileiro não pode se tornar objeto de exploração econômica abusiva, especialmente quando o Estado se omite na fiscalização ou na regulamentação efetiva das concessões.
O voto de Dino foi acompanhado pelo ministro Alexandre de Moraes, que também defendeu a manutenção das cautelares. Por outro lado, o ministro André Mendonça abriu divergência, votando pela revogação das liminares, e foi seguido pelos ministros Dias Toffoli, Edson Fachin e Cristiano Zanin. O placar parcial mostra um julgamento dividido, revelando o quão delicada é a discussão sobre os limites da atuação privada na prestação de serviços públicos essenciais.
A decisão do ministro Gilmar Mendes de levar o caso ao Plenário físico, após pedir destaque, marca um novo capítulo no julgamento. Agora, os ministros debaterão o tema em sessão presencial, o que pode abrir espaço para discussões mais amplas e aprofundadas sobre os impactos da privatização, o papel da regulação municipal, e o dever constitucional de garantir o mínimo existencial à população, especialmente em serviços públicos de natureza sensível como os funerários.
Esse caso lança luz sobre uma discussão mais ampla: a privatização de serviços públicos pode ser uma ferramenta legítima de modernização e eficiência, desde que acompanhada de uma estrutura sólida de regulação, controle social, transparência e respeito aos direitos fundamentais. A ausência desses elementos, como aponta o voto do relator, pode transformar um modelo de concessão em um vetor de desigualdade e exploração, sobretudo em momentos de fragilidade emocional das famílias.
É necessário lembrar que os serviços públicos, mesmo quando executados por terceiros, continuam sujeitos ao regime jurídico administrativo e aos princípios constitucionais que regem a administração pública. A dignidade da pessoa humana, prevista como fundamento da República no artigo 1º da Constituição, não se sujeita a lógicas puramente mercadológicas. Por isso, é dever do Estado, e, por consequência, do Poder Judiciário, atuar de forma firme e eficaz para garantir que esse valor seja respeitado em todos os momentos da vida do cidadão, inclusive na morte.