A recente manifestação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre os efeitos da reforma tributária traz importantes reflexões para empresas, contribuintes e profissionais do Direito. Segundo relatório elaborado por grupo de trabalho da Corte, a criação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), instituídos pela Emenda Constitucional nº 132/2023, poderá provocar um crescimento expressivo do contencioso judicial tributário no Brasil. A projeção feita é de que os processos envolvendo tributos tripliquem nos próximos anos, em função da fragmentação da arrecadação e da ausência de mecanismos claros e eficazes de unificação na cobrança e no julgamento dos novos tributos.
De acordo com os ministros do STJ, o novo sistema tributário, ao manter a competência tributária fragmentada entre União, estados e municípios, acarreta o risco de que um mesmo fato gerador resulte em três diferentes créditos tributários, com possíveis execuções fiscais movidas por entes diversos, o que compromete a racionalidade do modelo. Essa multiplicidade de sujeitos ativos e passivos, aliada à ausência de um órgão central para processar e julgar os litígios, tende a sobrecarregar o Judiciário. O relatório estima que somente com os novos tributos haverá incremento de pelo menos 28,7 mil ações no STJ, com impacto direto de 2% na distribuição de processos da Corte, além de uma alta de 35% nos litígios tributários em geral. Em um cenário mais preocupante, o número de novas execuções fiscais poderá ultrapassar 680 mil, especialmente se não houver integração entre os entes federativos quanto à cobrança. A Justiça Federal poderá sofrer aumento de até 107% no volume de execuções, e a Justiça Estadual, 16%.
Outro ponto crítico abordado pelo STJ diz respeito à proposta da Advocacia-Geral da União (AGU) e do Ministério da Fazenda de centralizar o contencioso judicial em um único órgão. Segundo o relatório, essa medida traria obstáculos administrativos e orçamentários “intransponíveis”, além de representar um retrocesso do ponto de vista do direito à ampla defesa e ao contraditório. Também foi criticada a proposta de criação de dois novos tipos de ação que seriam ajuizados diretamente no STJ, o que retiraria instâncias intermediárias e colocaria a Corte em posição de sobrecarga excessiva.
As críticas feitas pelo STJ causaram desconforto em integrantes do grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), presidido pelo ministro Luís Roberto Barroso, responsável por estudar o impacto da reforma no Judiciário. Isso porque a proposta da AGU foi considerada uma das bases do trabalho desenvolvido por esse grupo. A percepção é de que o relatório da Corte, além de crítico, apresentou poucas sugestões práticas para enfrentar os desafios que se impõem. Ainda assim, algumas propostas foram colocadas. Entre elas, a unificação da atividade de cobrança da CBS e do IBS — uma medida que permitiria, segundo o STJ, que procuradores da Fazenda Nacional e das procuradorias estaduais e municipais atuassem de forma coordenada e integrada, reduzindo disputas paralelas sobre os mesmos fatos geradores. Também se sugere a adoção de critérios de alçada para determinar qual ente público deve ajuizar as execuções fiscais: valores pequenos seriam responsabilidade dos municípios, valores médios dos estados e os grandes da União. Isso reduziria a multiplicidade de ações e tornaria o sistema mais funcional.
Por fim, os ministros propõem que se exija o esgotamento da via administrativa antes do acesso ao Judiciário, medida que poderia reduzir o volume de ações e fomentar a resolução prévia de controvérsias. No entanto, essa proposta já enfrenta resistência, pois o Supremo Tribunal Federal recentemente afastou a necessidade de requerimento administrativo prévio em determinadas situações, como no caso da isenção de imposto de renda por doença grave. Especialistas apontam que tal exigência seria problemática em casos urgentes e poderia comprometer a efetividade do acesso à Justiça.
A percepção predominante entre os juristas é que a insegurança jurídica em torno do novo modelo pode estimular litígios no curto e médio prazo. Ainda há muitas indefinições sobre a competência dos órgãos responsáveis por processar e julgar os novos tributos, bem como sobre a forma de atuação do Comitê Gestor do IBS e da Receita Federal. O resultado é um ambiente de incerteza para os contribuintes, que se veem diante de um cenário de alta complexidade e possíveis conflitos de interpretação entre os entes federativos. Para especialistas, como o advogado Eduardo Lucas, sócio do Martinelli Advogados, a grande questão é: como três tributos que incidem sobre o mesmo fato gerador, mas pertencem a entes diferentes, poderão ser cobrados e questionados judicialmente de forma eficaz, sem gerar caos institucional?
Na avaliação de parte da doutrina, o relatório do STJ acaba priorizando a visão estatal, com foco na sobrecarga do Judiciário, em detrimento da proteção dos direitos dos contribuintes e da construção de um modelo que assegure segurança jurídica e eficiência. Ainda que reconheça os desafios administrativos envolvidos na transição para o novo sistema, é necessário que o debate evolua para soluções práticas, voltadas também à simplificação e à previsibilidade para quem paga tributos.
A atuação proativa neste momento de transição é essencial para prevenir litígios, organizar fluxos internos e garantir o pleno exercício dos direitos dos contribuintes. Em um cenário de tantas incertezas, informação técnica, estratégia jurídica e acompanhamento qualificado se tornam diferenciais indispensáveis.