STF começa a julgar ADIs que questionam fim do voto de qualidade no Carf

O Supremo Tribunal Federal iniciou na última sexta-feira (2/4) o julgamento de três ações diretas de inconstitucionalidade que questionam o fim do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). A Lei 13.988/20 alterou o regime do voto de qualidade no Conselho. Ao dar nova redação ao artigo 19-E da Lei 10.522/2002, a manifestação de desempate a favor do Fisco feita pelo presidente da turma julgadora passou a não mais ser admitida em “julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário”. Assim, as controvérsias deveriam passar a ser resolvidas favoravelmente ao contribuinte.

Antes da alteração legislativa, os casos empatados no Conselho eram decididos pelo voto de qualidade, por meio do qual o presidente da turma de julgamento, sempre representante da Receita Federal, proferia o voto de minerva. Em julho do ano passado, o ministro Marco Aurélio negou cautelar, argumentando que a situação trazida aos autos era insuficiente para justificar intervenção de urgência. Em voto inserido no Plenário virtual nesta sexta-feira (2/4), o ministro, que é relator do caso, abriu o julgamento votando pela inconstitucionalidade da norma.

Para o decano do STF, a lei padece de abuso do poder de emenda, pela prática do “contrabando legislativo”, popularmente conhecido como jabuti: a prática de, durante a fase de conversão da medida provisória em lei, dispositivos tratando de tema sem relação com a proposição original. A Lei 13.988/20 originou-se da Medida Provisória 899/2019, editada pelo presidente Jair Bolsonaro com o objetivo de suprir a ausência de regulamentação, no âmbito federal, do disposto no artigo 171 do Código Tributário Nacional. Trata-se da norma que permite transação tributária e extinção de créditos.

A minuta inicial apontava que a falta de regulamentação impedia maior efetividade da recuperação dos créditos inscritos em dívida ativa da União e gerava excessiva litigiosidade, aumento de custos, perda de eficiência e prejuízos à administração tributária federal. Durante a sua conversão em lei, o Congresso incluiu e aprovou o trecho que trata do voto de qualidade, apesar de não constar do texto originário. E o Parlamento sequer cogitou da exposição de motivos.

“Considerada a celeridade do processo legislativo da medida provisória, acabam limitados a participação da sociedade civil e o debate público, inclusive no âmbito das comissões temáticas do Parlamento, próprios do rito ordinário de deliberação legislativa. Há inobservância do princípio do devido processo legislativo”, destacou o ministro Marco Aurélio.

Vício material afastado

Reconhecida a inconstitucionalidade formal, o relator ainda analisou e afastou a existência de vício material. Apontou que o artigo 19-E inserido na Lei 10.522/2002 não criou voto de qualidade em benefício do contribuinte; apenas definiu que, se não há maioria no colegiado do Carf, não se tem confirmado o lançamento do tributo. “A adoção, no contencioso fiscal, de solução favorável ao contribuinte, em caso de empate na votação, não conflita com a Constituição de 1988. É opção legítima e razoável do legislador, estando em harmonia com o sistema de direitos e garantias fundamentais”, afirmou.

Discussão intensa

O desempate por voto de qualidade é objeto de debates no setor há anos. Sua extinção foi largamente comemorada por tributaristas. Quem não gostou, claro, foi a administração pública: a Fazenda passou a destacar que, por se tratar de revisão de atos administrativos pela própria União, com a impossibilidade de a União levar a discussão ao Judiciário em caso de exoneração do crédito tributário, a mudança não estaria de acordo com o interesse público e a presunção de legitimidade dos atos administrativos.

Essa análise centrada apenas na composição do órgão e nos critérios para desempate, contudo, desconsidera o cenário macro em que se insere o contencioso levado ao Carf, segundo o advogado tributarista Breno Vasconcelos, sócio do Mannrich e Vasconcelos Advogados. “Em um país cujo sistema tributário é marcado por uma super produção de normas, em que a interpretação dessas regras é ônus dos contribuintes e as consultas por eles formuladas demoram a ser respondidas (conforme Acórdão TCU nº 1105/2019), grande parte da causa do contencioso deve ser atribuída à União, que mantém um sistema marcado de complexidade e insegurança jurídica”, afirma.

Segundo Vasconcelos, “para além da revisão e compilação de atos normativos, com orientações claras sobre seu entendimento, a Fazenda Pública deve ter incentivos à implementação de medidas que confiram mais transparência e segurança na interpretação da legislação tributária, e facilitem o diálogo com os contribuintes para que possam se autorregularizar, evitando o litígio”.

Por sua vez, em coluna publicada na ConJur, o advogado e professor da USP Heleno Taveira Torres defendeu que a norma que acabou com o voto de qualidade é inconstitucional. Primeiro, por causa de vício formal: “o dispositivo impugnado resultou de emenda parlamentar apresentada após a emissão de parecer pela comissão mista, sem qualquer relação de pertinência com a Medida Provisória 899, de 16/10/2019, que lhe deu origem”. A MP tratava da transação tributária.

Em seguida, entre as inconstitucionalidades materiais, Torres enumera que o fim do voto de minerva cria preferência contrária ao princípio da prevalência do interesse público sobre o privado; desequilibra a relação processual, em virtude da paridade do órgão julgador, e, com isso, afronta o princípio da prevalência do interesse público sobre o privado.

A mudança, prossegue, ainda “suprime a presunção de legitimidade do ato de lançamento tributário justamente nas hipóteses de incertezas e dificuldades de maiores complexidades reveladas na interpretação da legislação tributária”.

Já para o advogado tributarista Bruno Teixeira, do Tozzini Freire Advogados, explica que a alteração do voto de qualidade tinha clara pertinência temática com a MP, dentro do contexto de redução da excessiva litigiosidade em matéria tributária, por meio da otimização do procedimento de construção do crédito tributário. “A tramitação para aprovação da Lei foi regular, com ampla reflexão pelo Congresso e pelo Presidente da República, que sancionou a norma no último dia do prazo. Estamos diante de uma opção legislativa que deve ser respeitada”, ressalta.

Segundo Bruno, a expectativa é que o Supremo mantenha a sua postura garantista que vem evidenciando nos últimos tempos, especialmente em matéria tributária. “Para além da razão jurídica, do óbvio, o Supremo Tribunal Federal deverá se preservar ante a mais uma investida de judicialização da política”, afirma. Na opinião de Mírian Lavocat, advogada tributarista sócia do Lavocat Advogados e ex-conselheira do Carf, não se pode esquecer que a legislação do processo administrativo fiscal é antiga e, durante muitos anos, viu-se a necessidade de alteração, especialmente quanto ao voto de qualidade. “Não vi excessos por parte dos julgamentos no Carf, e, mais ainda, vi uma diminuição de casos que eram levados corriqueiramente ao Poder Judiciário para que aplicasse, então, a legislação pró-contribuinte”, ressalta.

As ADIs

São três ADIs julgadas em conjunto: uma delas foi apresentada pela Procuradoria-Geral da República e defende que a lei que acabou com o voto de qualidade no Carf padece de inconstitucionalidade formal, por vício no processo legislativo. O dispositivo que alterou a lei foi incluído em uma Medida Provisória que regulamentava transações tributárias no país.

A outra, protocolada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), alega que a medida desequilibra a paridade dos julgamentos no conselho, pois privilegia o polo privado do conselho, fere a soberania do Estado e acaba com a paridade de armas na discussão sobre uniformização jurisprudencial e controle de legalidade dos atos praticados pela autoridade fiscal.

A última delas partiu da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) e sustenta que o fim do voto de qualidade vai acarretar perda imensurável de arrecadação para os cofres públicos. A medida implicaria, inclusive, em possível carência de recursos para o combate da epidemia do coronavírus.

Fonte: Conjur